Os arquivos de Leonilson


J.L.B.D, de 1993, ano da morte do artista

De SP

A exposição Sob o peso dos meus amores, no Itaú Cultural, em São Paulo, é um importante documento sobre Leonilson, um dos artistas mais singulares que a arte contemporânea brasileira foi capaz de projetar. Fica em cartaz apenas até domingo, dia 29, e quem não foi ver deve correr até a Avenida Paulista. Alguns podem estranhar esta palavra, “documento”. Mas faço questão de frisá-la. O que se vê no Itaú é uma mostra, sim, mas também um arquivo, um leque de informações aberto em público, com a curadoria de Bitú Cassundé e Ricardo Resende destacando a taxonomia e o perfil de diário íntimo da obra de José Leonilson Bezerra Dias (1957-1993), cearense de Fortaleza, radicado em São Paulo, morto vítima de complicações decorrentes da Aids, já então reconhecido como um dos grandes artistas de seu tempo.

Percorri a mostra três vezes, em três viagens distintas a São Paulo, antes de resolver escrever esta crítica. A cada nova ida ao Itaú Cultural, ia sendo mais contagiada, sobretudo naqueles momentos em que conseguia ficar sozinha junto a uma parede de pequenos desenhos ou abrindo uma gaveta dos arquivos de madeira espalhados pelos andares do prédio na Paulista.

"Jogos perigosos", de 1990

Voyeur de um universo de delicadezas muito particulares que Leonilson sempre ofereceu em público, me senti mais perto dele, um pouco sua cúmplice. Vasculhei suas gavetas, li seus escritos, percorri suas agendas e caderninhos nas ferramentas interativas da 32Bits Criações Digitais. Cheguei perto do desfiado de sua telas sem chasis, a lona esticada também como uma pele sem carcaça, deixando à mostra suas memórias e sua fragilidade. Acompanhei o bordado letra por letra no voal, no veludo, na fronha de algodão, compreendendo como o desenho-pintura feito com linha, agulha e tecido era a forma de Leonilson chegar mais perto da mãe, bordadeira, e do pai, dono de um bazar que vendia de um tudo, inclusive vários tipos de pano. Era também, é claro, uma alternativa para continuar trabalhando depois que as tintas começaram a intoxicar seu corpo frágil, que já sofria com o baque da Aids. Era, sobretudo, uma maneira de suturar estas feridas do corpo e da alma com a paciência possível e muita entrega.

Sem título, 1987. Acrílica sobre lona, Coleção Luisa Strina. Foto de Eduardo Ortega

Na minha primeira visita, o excesso de obras no primeiro piso, logo à entrada do instituto, me incomodou bastante, com um acúmulo um tanto dispersivo em alguns momentos. Outro incômodo foi a onipresença da cenografia em madeira clara, que, se mimetiza que era de fato um pouco carpintaria, sempre em processo, por outro lado é ostensiva com o fundo e as laterais dos trabalhos. Continuam sendo, a me ver, pontos discutíveis da montagem, mas os únicos. E, nas duas visitas seguintes, eles foram ficando cada vez mais discretos diante do manancial oferecido pela seleção de obras feita pelos curadores.

"Leo não consegue mudar o mundo"

Leonilson, o artista que documentou a si mesmo e às angústias de sua geração, curiosamente ainda é muito pouco documentado pelo pensamento crítico brasileiro, pelas instituições, pelo mercado editorial. Sob o peso dos meus amores é uma exposição que une trabalhos emblemáticos do artista, como Leo não consegue mudar o mundo (acima), a obras pouquíssimo vistas e nunca registradas em uma publicação. Cassundé e Resende resgataram trabalhos que permaneciam desconhecidos mesmo estando em coleções conhecidas – como a da galerista Luísa Strina, que representou o artista. É dela a pintura em acrílica sobre lona, sem título, de 1987, em magenta e amarelo, onde se vê como os números formavam um sistema próprio na obra de Leonilson, uma forma de entender, medir, contar o mundo e demonstrá-lo em ilógicas equações. Números e palavras são a sua cosmogonia romântica, sua forma de plasmar uma obra que é feita de tributos e homenagens a amigos, ídolos e amantes, criada a partir de operações plásticas que impressionam pela sua extrema simplicidade, por sua enorme capacidade de síntese.

"Todos os rios", c. 1989

Sua obra é um catálogo, levando às últimas consequências uma característica própria da chamada Geração 80. O grupo de artistas que entrou para história como o responsável pela “volta” da pintura, na verdade talvez tenha feito sobretudo um outro tipo de resgate: o de uma relação mais próxima  e subjetiva com a imagem, recuperando-a como o motor da produção artística depois de duas décadas de desmaterialização. Cada um a sua maneira, os grandes nomes do período – Daniel Senise, Beatriz Milhazes, Nuno Ramos, Luiz Zerbini, entre outros – são colecionadores de imagens e de coisas do mundo, criam suas mapotecas particulares, gabinetes de imagens apresentados como uma cartografia e um índice do mundo. As peças desta bússola são engendradas e acessadas periodicamente, rearranjadas à maneira de uma composição musical, de um arranjo sinfônico.

As listas e os números de Leonilson ecoam nos retratos de amigos e nos objetos domésticos pintados por Zerbini, com quem trabalhou como cenógrafo no grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone.  E na obra de Leda Catunda, Sergio Romagnolo e Ciro Cozollino, que formaram com ele uma espécie de “Quarteto Fantástico” da pintura paulistana a partir de 1984, quando os quatro participam juntos, na mesma sala, da mostra Como vai você, Geração 80?, realizada no Parque Lage.

Os desenhos delicados, tanto os que serviram para ilustração da coluna de Barbara Gancia no jornal Folha de S. Paulo, quanto os outros, mais livres, chamam a atenção neste sentido, por se configurarem como uma pequena imagem boiando em um imenso oceano de papel. A área vazia é um elogio da imagem, a reforça por oposição. Entre todas as imagens possíveis, aquela é a pinçada ali, como peixe grande depois de horas de espera, um solitário que se ganha de noivado, o primeiro pedaço do bolo. Aquele é o vestígio de sua interpretação do mundo que Leonilson escolheu guardar, assim como Beatriz Milhazes revela memórias de cajus, rosas e volutas; ou Daniel Senise o Retrato da mãe do artista, de Whistler; ou Nuno Ramos um trecho de um poema de Drummond ou de um samba de Nelson Cavaquinho. Guardar imagens, repeti-las, demonstrar no corpo do trabalho a memória de todo o processo de trabalho para se chegar até elas. Este talvez seja o grande feito da Geração 80 depois de 20 anos de esgarçamento e descarte da figura, da matéria.

No Itaú, também percebe-se claramente como Leonilson radicaliza a influência de Antonio Dias, pintor que o acolheu – real e simbolicamente. Em um momento em que alguns artistas mais velhos se voltavam contra os pintores dos anos 1980 que já faziam sucesso, em uma campanha surda de desvalorização de seus trabalhos, Dias não se manteve à margem, como comprou obras de Leonilson, agendou sua primeira exposição na Itália e o acolheu em sua casa em Milão. A viagem, fundamental para sua carreira, também o ajudou a equacionar questões pessoais, referentes à sua sexualidade. Pele e território, duas âncoras na produção de Dias, reaparecem em Leonilson de forma muito clara, transmutadas. O corpo é rio e cidade nos jorros de palavras, com mil afluentes. E o próprio suporte da pintura de Leonilson é pele e é corpo, revelados sem pudores e sem maiores revestimentos.

"Jesus com rapaz acidentado". c. 1991. Foto de Eduardo Ortega

A apresentação da parceria com o alemão Albert Hein, nunca vista no Brasil, e o trabalho magnífico para o site do Itaú, que você vê clicando aqui, são outros destaques. No portal web, aliás, toda a vida pessoal de Leonilson é exposta de

"Voilà mon coeur", 1990

maneira muito clara, com trechos de áudio em que ele comenta suas dúvidas no filme Um oceano inteiro para nadar; depoimentos dos amigos (aqui) Leda Catunda, o fotógrafo e hoje galerista Eduardo Brandão e o jornalista Jan Fjeld; além de cartas, cartões, cadernos.

Em um primeiro momento, senti falta desta abordagem da Aids e da homossexualidade na mostra física, montada nas salas do Itaú. Depois compreendi que o site nos dá mais tempo para absorver todas estas coisas e conectá-las com a obra em profundidade.

Passar discretamente por isso no espaço real foi uma forma de apresentar Leonilson para além de suas escolhas íntimas. O peso de seus amores vem de sua humanidade e ganha potência pelo fato de ser um grande artista, independentemente do sexo das pessoas por quem tenha sido apaixonado.

Uma exposição que merecia ser vista e revista mais do que as três vezes que couberam em minha agenda.

Caderno de anotações de Leonilson, 1992-1993

9 thoughts on “Os arquivos de Leonilson

    1. Oi, Helcio, obrigada!
      Também torço para que pinte um super catálogo, mas o site, se continuar no ar, é um catálogo também – e muito democrático, porque disponível on line. Muito bom!

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  1. Daniela, parabéns pelo seu texto, muito bom! A analise que você elaborou da exposição foi descritiva e reflexiva nos convidando, enquanto leitores a visitar para compreender o trabalho dos curadores. A exposição é uma construção de narrativas, produção de memórias e é muito importante este recorte critico que você propôs. E deixo uma dica: Você sabia da revista Musear? http://www.museologia.ufop.br/musear/
    Ela receberá resenhas de exposiçoes. Abraços, Carolina.

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