A Bienal como alimento

Tenho escrito pouco aqui porque migrei meus artigos e críticas para a Revista Caju (clique aqui para acessar o site), projeto colaborativo on-line sobre cultura, arte, pensamento e criatividade. Estreei hoje lá uma coluna de crítica de arte, em que analiso o trabalho Restauro, de Jorge Menna Barreto, para a 32a Bienal de Arte de São Paulo. Através dele, também comento a Incerteza viva proposta pelos curadores da exposição. O texto na íntegra está abaixo.

+++

restauro4
Vista de “Restauro” na Bienal. Foto de Raul Leal

Restauro, o restaurante montado pelo artista Jorge Menna Barreto na 32a Bienal de São Paulo, talvez seja o trabalho mais radical e potente da Incerteza viva, tema proposto por Jochen Voz e os curadores associados da exposição.

A alta voltagem da obra vem de sua capacidade de diluição e de infiltração, e a distinção do restaurante é sua capacidade de servir. Menna Barreto e sua equipe passaram os três meses da Bienal na cozinha e no balcão, oferecendo ao público porções generosas daquilo em que mais acreditam: comida vegana saborosa, aromática e bonita, em três refeições diárias, a preços confortáveis. Pode parecer contraditório, e talvez o bom é que seja, já que a contradição também é alteridade, mas Restauro é contundente por seu silêncio e sua quase invisibilidade.

Não há nenhum ponto para café, petiscos ou refeições dentro do prédio da Bienal e, além do público, toda a equipe do projeto (curadores, arquitetos, mediadores) é convidada a, mais do que comer, se alimentar ali. O esquema de bandejão e as mesas coletivas reforçam a ideia de comunhão oferecida pela comida. Também posicionado no prédio como uma espécie de praça para encontros, contemplação ou observação, Restauro tira do nome que deu origem à palavra “restaurante” a possibilidade de se transformar no impulso para um novo ciclo – da exposição, de cada visitante que se transforma em comensal. Estar aberta(o) ao cardápio-surpresa, que nunca se repete, foi a mais reconfortante das incertezas.

“DESLEITURAS”, projeto que começou em 2011

É um trabalho significativo para a trajetória de Menna Barreto, que com ele dá giros a mais na espiral de suas inquietações.  Desde o início, sua produção tem relação profunda com a palavra e com o site specific, como mostram os seminais  Con fio (1998) e Massa (2000),  e ainda Metabólide  (2010) e os tapetes-verbetes  de Desleituras (2011).

JORGE MENNA Barreto toma um
JORGE MENNA Barreto toma um “Suco específico”. Imagem do site do artista

Em 2007, o artista apresentou a primeira versão do Café Educativo, trabalho que condensa as possibilidades de interação com o espaço expositivo e com o público com o entendimento da comida como algo que pode ser político e transformador. Desde sua primeira montagem, o Café já teve várias configurações, mas permanece sempre a função de ser um ponto de apoio para os mediadores da mostra da qual faz parte e também um lugar de pausa e de troca para o público, através da degustação de um simples café ou mesmo de um suco específico. 

A elaboração deste outro projeto, que começou em 2014, amplia a relação de Menna Barreto com os recursos naturais do lugares em que está expondo. Nos jardins dos museus e instituição e nas áreas próximas, ele recolhe as chamadas Panc (Plantas comestíveis não-convencionais) e com elas cria os Sucos específicos servidos ao público. O espaço do café e as bebidas criam uma relação de simbiose com a exposição e com a arquitetura do lugar em que ela acontece, entrando em um estado de comunhão com o público através do alimento.  Cada visitante, por sua vez, tem a possibilidade de fazer parte, de fato, da obra de arte, ocupando ainda um lugar no “ecossistema” que envolve o museu e seus arredores.

Espelho opaco para a Bienal

Restauro dá outra escala para as raízes plantadas pelo Café Educativo. Isso é nítido não apenas no que diz respeito às dimensões físicas do trabalho quanto em sua duração, mas sobretudo em seu poder simbiótico com o público e com a própria exposição. O restaurante montado no Ibirapuera é o melhor espelho que a Bienal poderia ter, e isso não se dá por sua nitidez, mas justo pelo oposto. Na sua opacidade, Restauro nos permite vivenciar de maneira mais radical o propósito curatorial de Jochen Voz e seus companheiros de jornada. Extremamente político, sem no entanto jamais ser direto ou didático demais, a ocupa-ação é como aquele tipo de muda que insiste em nascer  ao lado de outras teoricamente mais vistosas, se alastrando silenciosamente até dominar o vaso. Uma erva daninha que, como vem ocorrendo nos mais recentes estudos de agricultura, tem sua adaptabilidade usada para combater a fome.

No texto em que apresenta a Incerteza viva no catálogo da Bienal, Jochen Voz cita Marc Fischer para falar do cenário pós-apocalíptico em que vivemos e especificamente de uma “sensação de atraso, de viver após a corrida do ouro”, que é “tão onipresente quanto inconfessa”. Recorrendo também a Cervantes e a seu Dom Quixote, o curador enuncia que a exposição não pretendeu apresentar as lutas inglórias contra todos os moinhos, e sim na perseguição de novas utopias que possam garantir que o cavaleiro andante permaneça em movimento.  A Bienal, escreve ele, pretendeu ser uma “investigação para encontrar o pensamento cosmológico, a inteligência ambiental e coletiva  e a ecologia sistêmica e natural”. É ainda uma jornada em meio a neblina, mas, insiste o curador, a arte sempre trabalhou com o desconhecido, enfrentando paradoxos e se valendo “da incapacidade dos meios existentes para descrever o sistema de que somos parte” para apontar para a desordem, para a dúvida.

Apostar nessa deriva já foi um gesto bastante destemido do grupo de curadores, que optaram por radicalizar a incerteza ao proporem uma Bienal que tem quase dois terços de seus trabalhos comissionados. Isso significa que a exposição foi construída na penumbra, sob forte nevoeiro, com uma aposta mais no caminho do que na chegada. É um risco, mas um risco extremamente louvável.

No resultado visível para o público, a aposta arriscada incorre em certas repetições (um excesso de trabalhos com terra e com referências indígenas, por exemplo) e em escorregadas para o didatismo (é impressionante a quantidade de trabalhos em tópicos ou em formato de painel, organograma ou poster), por outro presenteia o visitante com uma coleção de potências. Eu destacaria neste último grupo o trabalho de Laís Myrrha. As torres totêmicas de Dois pesos, duas medidas resumem nossa história ancestral e nossa economia recente em um único golpe e impressionam por seu enorme poder de síntese, mas também por sua capacidade de comunicação plástica e imagética.

Esta é, aliás, outra virtude desta Bienal: embora não incorra nas armadilhas de uma beleza gratuita, não deixa de se preocupar com a plasticidade, criando âncoras visuais para o visitante em todo o percurso expositivo. Elas garantem empatia e possibilidade de mobilização desses passantes. Isso não ocorria de forma alguma na Bienal anterior, que desperdiçou trabalhos muito potentes em um esgarçamento expositivo sem nenhuma aderência para quem se dispunha a percorrê-lo. Nesta edição, além da organicidade proposta pela curadoria, conta muito para o sucesso dessa jornada mais comunicativa o projeto expositivo do arquiteto Alvaro Razuk e sua equipe, que opta por emular a proposta da curadoria. Discreto, quase imperceptível, usa o mínimo de divisórias e de cenografia, apostando no organicidade e também na sustentabilidade.  Também não briga com o desafiador prédio de Oscar Niemeyer e nem prentende escondê-lo: a arquitetura e a paisagem que entra pela janela estão incorporadas ao projeto.

Eu listaria outros artitstas e obras que valem uma ida ou um retorno ao Ibirapuera, onde a Bienal estará montada até 11 de dezembro: While I speak, While I writeWhile I walk, de Grada Kilomba; Francis Alÿs, sempre ele; Cristiano Lenhardt; Wlademir Dias-Pino; Tracey Rose; Vivian Caccuri; o projeto Vídeo nas aldeias; José Antonio Suárez Londoño e as salas históricas e em homenagem a Victór Grippo; Sonia Andrade e Wilma Martins.

É importante dizer ainda que a Bienal tem mais mulheres do que homens e artistas de todos os continentes, com forte presença da África. Também é importante dizer que o que é importante dizer precisa ser dito, refletido, deglutido, transformado em alimento.  Esta talvez seja a aposta mais bem sucedida da 32a Bienal, que tem em Jorge Menna Barreto um de seus pratos mais cheios.

Deixe um comentário