Obra de arte não é foto de família

Até quando vamos perder acervos como o de Hélio Oiticica?

Parangolé Mangueira, de HO
Parangolé Mangueira, de HO

Reproduzo abaixo a reportagem do Globo On Line, assinada por Flávia Lima e postada hoje, às 9h41, na home do jornal. Gostaria de, antes de mais nada, manifestar meu pesar e minha solidariedade aos membros da família HO com quem trabalhei e que conheci de perto. Tenho certeza de que a barra está pesada e tomo a liberdade de usar o blog para mandar meu beijo para Janjão e Maria.

Peço licença e até desculpas aos dois, mas acredito que é hora de aproveitar a tragédia e tocar a sério em uma questão espinhosa e delicada.

Boa parte do acervo de Hélio Oiticica, um dos maiores artistas – senão o maior – dos anos 1950 e 1960 da arte brasileira, estava numa casa do Jardim Botânico.

É uma casa comum, onde HO morou – e onde Ferreira Gullar enterrou seu famoso poema.  A família Oiticica ainda mora lá, isto é, o lugar onde está a reserva técnica tem duplo uso, é vizinho à esfera doméstica.

A pergunta é: por que este acervo não estava numa instituição? A família recebeu durante anos um fee mensal de R$ 20 mil da Prefeitura, para deixar o acervo no Centro de Artes Hélio Oiticica.  Mas há anos, também, o grosso das obras não estava no prédio da Rua Luis de Camões, já que a reserva técnica era erguida paulatinamente no Jardim Botânico. Algumas obras significativas foram vendidas para o  Museu de Houston, no Texas, Estados Unidos.

Quando o novo governo assumiu, a Secretaria de Cultura entendeu que não deveria pagar para sediar o acervo. Não renovou o contrato para os R$ 20 mil mensais, mas reiterou a disponibilidade de sediar toda a estrutura do Projeto HO nas dependências municipais. Foi então que o sobrinho de HO, Cesar Oiticica Filho, retirou o que restava das obras no prédio.  Ele também alegava, com razão, que estava com o pagamento atrasado por ter produzido duas exposições que estavam em cartaz no Centro, com dois penetráveis do artista. A produção das exposições, feita pela própria família (no valor aproximado de R$ 500 mil) nada tinha a ver com o dinheiro recebido mensalmente da Secretaria. O desembolso era feito à parte, dentro da Lei do ISS.  Quando a nova gestão entrou, como sempre ocorre, foram feitas auditorias nas contas. O pagamento atrasou.  No poder público, é comum haver atrasos no início do ano, ainda mais em início de gestão. Não é o correto, mas é o corriqueiro – e todo mundo que já trabalhou com dinheiro público sabe disso. Mas Cesinha fechou as portas da exposição, privando o público de ver os penetráveis de HO.

Estava à época dentro da Prefeitura e tentei ajudar na negociação, bastante infrutífera – de ambos os lados, é bom que se diga, para alguma defesa da família. Havia incompreensão de parte a  parte, embora tenha havido um esforço hercúleo, feito especificamente pela direção do Centro de Artes, para que os vínculos com a família fossem mantidos.

Já do lado de fora do poder municipal há meses, continuo com a mesma sensação de mal estar que me acometeu na época – e que coincidiu coma polêmica envolvendo a família de Volpi e a exposição organizada por Vanda Klabin no Instituto Moreira Salles.

Admiro o empenho de César Oiticica, irmão de Hélio, e de seu filho Cesinha em preservar a memória de HO. Acho mesmo que a família deve ser cão de guarda desta memória. Mas há limites: obra de arte não é foto de família e não deve ser tratada como tal.  Uma parangolé não é uma jóia que se bota no cofre.  No caso de HO – e de qualquer outro artista, sobretudo de seu quilate – a memória é da família, mas também de toda uma sociedade.

É claro que prédios públicos também pegam fogo, mas há menos probabilidade e maior vigilância. O que é público pode ter acompanhamento público. O que está numa casa do Jardim Botânico não é velado por ninguém, a não ser por quem mora lá.

É preciso pensar já em leis que regulem esta situação… Ou outros acervos serão perdidos.

A regulação do direito de imagem é outro ouriço:  alguns artistas da maior importância para a história da arte brasileira estão deixando de figurar em catálogos e mostras por causa da irredutibilidade dos herdeiros. Mas isso é tema para outra conversa…

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A REPORTAGEM DO GLOBO ON

oiticica

RIO – Um incêndio na casa da família do artista plástico, pintor e escultor Hélio Oiticica no final da noite desta sexta-feira, no Jardim Botânico, Zona Sul, destruiu 90% do acervo das obras de arte do artista, um dos fundadores do movimento neoconcretista. Segundo o arquiteto César Oiticica, irmão de Hélio, cerca de duas mil peças do artista, morto na década de 1980, foram queimadas, num prejuízo estimado em US$ 200 milhões.
Bombeiros do quartel do Humaitá foram chamados para combater as chamas. Ainda não há informações sobre o que pode ter provocado o incêndio. O fogo atingiu uma sala do primeiro andar da casa onde ficavam as esculturas, as pinturas e as instalações do artista. A sala, porém, tem controle de umidade e temperatura. Não houve feridos.
– A cultura brasileira que ficou ferida – disse César Oiticica, desolado.
Segundo o site G1 , os parentes estavam no andar de cima quando sentiram um forte cheiro de fumaça.
– Arrombei a porta para sair a fumaça e a gente entrar e ver o que era, mas já era tarde demais. Já estava pegando fogo em tudo – disse César. – Eu sinto que fracassei, pois desde que me aposentei minha missão era cuidar da obra dele. Eu me sinto péssimo.

40 thoughts on “Obra de arte não é foto de família

  1. Há dois anos desenvolvi um modelo de gestão de patrimonio em obras de arte e fiz o orçamento de quanto custaria levantar uma reserva técnica com um galpão no “osso”: no máximo R$ 400 mil(incluindo equipamento importado). Considerando que o acervo HO está avaliado em US$ 200 milhões é inacreditável que estivesse onde estava.
    Outro ponto é o que foi publicado hoje, palavras de um membro da família: “reserva técnica é como o cofre de um banco”. Pera lá meu amigo, um banco é uma instituição financeira privada onde um cliente – ALUGA – um cofre, principalmente considerando que o Centro Hélio Oiticica é espaço público dedicado as artes plásticas e os membros da família são responsáveis pelo acervo e a MEMÓRIA!!

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  2. Familía Mangueirense, de luto por fazer duas vezes chorar o sepultamento de do filho ilustre mano Hélio. Nossa cabeça pará. Já esta mais que na hora de um enredo “Parangolé no olhar” Imagina Serginho do pandeiro em cima do nosso pavilhão, desenvlvendo o sonho do mano Hélio ??? Isso ele vai gostar, ah vai…

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  3. “a família do J. Carlos não quer doar o material ou ninguém quer absorvê-lo ?”
    sim , Daniela , voce colocou muito bem…
    não adianta nada a indignação , a única coisa útil que pode surgir desta tragédia é a discussão e a vontade de mudar esta realidade …
    na ponta do lápis … o seguro destas obras de HO avaliadas em 340 milhões ficaria em aproximadamente em 7 milhões … qual instituição bancaria isto ?

    O Centro HO nao queria pagar nem 20 mil por mes.
    O Estado? Podemos excluir. Sabemos que nao investiriam isto.
    A familia teria condições?
    Mesmo uma instituição financeira, como o Itau, ligado às artes… de quantos eventos teria que abrir mão para fazer o seguro desse material?

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  4. É uma assunto espinhoso mesmo. A obra precisa ser preservada para o bem da cultura nacional, mas ela também é a principal herança que um artista deixa a seus sucessores (inclusive em termos financeiros). Creio que faltou da parte da própria família presença de espírito para, a partir do interesse sobre a obra do HO, buscar melhores soluções para a conservação do acervo – sim, estou pensando na Lei Rouanet: muita empresa grande adoraria ter o retorno de marketing que um projeto desses, com uma artista tão importante, proporciona. Mas a postura da Prefeitura do Rio também não ajudou em nada.

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  5. “Mas há anos, também, o grosso das obras não estava no prédio da Rua Luis de Camões, já que a reserva técnica era erguida paulatinamente no Jardim Botânico”.

    Daniela, vc que esteve envolvida, sabe responder por que? Vc não acha que isso é motivo para responsabilizar a familia?

    Leio os argumentos que possam defender a familia, mas nenhum mem convence. Se eles pensassem coletivamente, na importância do acervo pro mundo, teriam tomado providências mais eficazes para proteger as obras, nem que fosse passar a mão no telefone e ligar para o Segundo Caderno do Globo ou da Folha para oferecer um furo de reportagem: a prefeitura não paga corretamente para armazenar o acervo de HO. Aposto que rapidinho uma providência seria tomada. Mas e aí, como ficaria o ego dos que tem uma coleção exclusiva, milionária e tão valiosa na sala de casa?

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    1. conhecendo nossos cadernos de cultura não acredito que fosse assim tão fácil chamar atenção sobre a situação precária de acondicionamento da obra. agora que a tragédia deixou de ser prenúncio e virou fato tudo é notícia e os suplementos culturais dão visibilidade. Mas isso dura? Não, não dura, infelizmente não dura.

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  6. Imaginem quantos acervos estão na mesma situação? Lá fora tudo é documentado, tem imagem, áudio, fotos. Aqui temos alguns segundos de filme do Noel Rosa… Quando as coisas começarão a funcionar por aqui?? Mas acho também que não adianta manter um museu pra ninguém visitar. Só o CCBB que vejo sempre cheio. Abraços

    Dani

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  7. É uma perda LAMENTÁVEL !
    Espero que não aconteça com o acervo do artista Frans Krajeber, que quer doar seu acervo em Nova Viçosa no Sul da Bahia e a burocracia impede .
    E preciso tomar mais cuidado com o nosso patrimônio !

    Leonel Mattos
    Artista plástico

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  8. IRONICAMENTE NO MESMO BAIRRO, NO PARQUE LAGE, SE LANÇAVA MUITO CALOROSA E FESTIVAMENTE, O NUMERO QUATRO DA REVISTA DE ARTES VISUAIS SANTA ART MAGAZINE. VC SABE QUAIS AS OBRAS QUE FORAM VENDIDAS PARA HOUSTON? AO MENOS ALGUMA COISA SE SALVOU, VENDAMO-NOS ENTÃO, PARA SALVAGUARDAR NOSSA PROPRIA HISTÓRIA…

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  9. “ana maria santeiro (11:32:01) :

    Bem feito!”

    Eu li a matéria com muita tristeza e nem pretendia comentar nada, mas depois desse comentário, não pude ficar calada.

    É Por causa de pensamentos como o dessa pessoa que o Brasil esta nessa situação.

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  10. A depender do que foi queimado, essa notícia pode ser mais triste para a sociedade do que a da morte de HO. Porque grandes artistas são imortais em sua obra. Ao menos, nos dias de hoje, há registros fotográficos das obras de arte, mas isso está muito longe de ser o suficiente, especialmente no caso de um artista como HO, cujo trabalho não era apenas para ser contemplado, mas experimentado.

    Pensei agora na obra do grande cartunista J. Carlos, que registrou a história e os costumes do Brasil da primeira metade do século XX com seu traço e seu humor. Sua obra está toda amontoada em condições lastimáveis num quartinho de empregada na Tijuca, no apartamento da família, sujeita a incêndios, vazamentos, mofo, traças, poeira, roedores e diversos outros problemas corriqueiros que podem acontecer em qualquer residência. Além de estar bem longe dos olhos do público e dos pesquisadores.

    Devem haver muitos outros acervos importantes nessas condições.

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    1. A obra de J. Carlos está em Petrópolis , na casa do filho dele , Sr.Eduardo , que cuida dela com muita dedicação .
      Já fiz exposição deste acervo e fiquei muito feliz com seu estado de conservação .
      Está tudo muito organizado e o desenhista e pesquisador Cassio Loredano já digitalizou toda a obra .
      Seria bem melhor se a obra estivesse em ambiente climatizado , livre de perigo , mas em se tratando de obra de desenhista cuidada por familiares acho que é a que está em melhor estado .
      Já tive contato com herdeiros de desenhistas que guardam as obras dobradas em caixa de sapato …mas felizmente não é o caso da família de J. Carlos .

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    2. A pergunta, Alexandre, é a seguinte: a família do J. Carlos não quer doar o material ou ninguém quer absorvê-lo. Dependendo da resposta, os julgamentos variam, concorda? Beijos!

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  11. incompreensível e lastimável esse incêndio – realmente é um reflexo de coisas que não estavam operando de acordo.

    mas no fundo há de se identificar os erros intitucionais e fisicos.
    será irreparável.

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  12. O Poder público neste caso não tem culpa. A família que foi totalmente amadora. Vende uma ou duas obras e paga o seguro, ou manda para o Centro HO que agora vai ficar abandonado mesmo. Várias famílias de artistas falecidos adotam esta postura amadora e egoísta.
    Sugiro: Os grandes artistas vivos têm que fazer testamento delegando a guarda dos acervos às instituições públicas. Pois senão, quando morrerem, a história se repetirá, a família se achará dona, o olho cresc e em cima das possibilidades de lucrar com a obra do falecido.
    Muito triste isto tudo.

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  13. Uma grande vergonha para ambos os lados,pois um legado de tamanha genialidade e importancia,sendo tratado desta forma!Sinto me envergonhado por ver nossa cultura e identidade sendo tratada dessa forma!

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  14. voltamos sempre ao espinhoso nó da coisa pública-privada no Brasil. no caso dos acervos de artistas falta quase tudo, regulamentação séria, administração competente e punição severa. em casos como esse não dá simplesmente pra deitar lágrimas e fazer o luto como se fosse a morte de um animalzinho querido.

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  15. Estou triste. Com a incúria do Estado, com um comentário tolo que diz ” bem-feito”(pra quem , cara-pálida? pra nós?). Tudo muuuuiiito triste. É como se o Hélio estivesse morrendo outra vez

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  16. tristeza … é como se Helio Oiticica morresse outra vez…
    trabalho com curadoria e já vi acervo de desenhista guardado por viúva em caixas de sapato …
    perda para todos nós e para gerações futuras…

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  17. Uma pena tamanha irracionalidade. A obra de um artista não é feita para sua família, mas para o mundo. O egoísmo, a ganância provocam episódios como esse. O fogo não volta atrás. E a cultura brasileira terá para sempre essa ferida aberta.

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  18. Respeito a famíla pela perda, mas isto é resultado de um egoismo irresponsável. Afinal, o que significa “reserva técnica”? Reserva do que e para que?

    Natural que estejam muito envergonhados.

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      1. Pois, reitero o desejo que as obras de arte sejam respeitadas e que essa triste situação de ganancia da parte da família e inadimplência da parte do poder público pelo menos servam para que uma política que protege o patrimônio nacional e internacional com instrumentos tributários para possibilitar essa assim como uma legislação funcional que possa englobar os interesses nacionais e impedir individuais de agir unicamente para o seu próprio benefício ao detrimento da cultura.

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    1. Concordo com o Ernesto – Vejam a foto do irmão frente ao “acervo técnico” – ele é arquiteto?? Nunca vi um “acervo técnico” para obras de arte que parecia tanto chuveiro. E as obras empilhadas as umas sobre as outras sem sequer têm sido empilhadas corretamente (para a pintura deve-se embrulhar a tela e guardá-las frente à frente para que a superfície não seja tocado pela parte em madeira). E nem parecer ter sidas embrulhados em papel pH neutro, com plástico de bolhas – que é isso ~ uma triste prova de que fossem tratados como tratariam-se telas do velho Tio João quem gostava de pintar de vez em quando, colocando-as no chão numa garagem!

      Que haja mais respeito às obras de arte, isto é o meu desejo.

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  19. Concordo, não há nada para comemorar. Muito, muito triste o que aconteceu. As famílias tem o lado afetivo, mas os herdeiros crescem o olho em cima dos ganhos com as obras, o poder público é lento e tem dificuldade de entender o tema, e parte importante da cultura brasileira (e do mundo) vai pelo ralo…

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